A questão do chamado aborto do anecéfalo

Dra. Irvênia Prada*

Uma vez que o abortamento provocado, de um feto, implica em sua morte, ou seja, no término intencional de sua vida, o que é decidido e executado por outras pessoas, alheias à sua individualidade, reveste-se, o assunto, da mais alta gravidade. As considerações que se seguem acham-se afetas a algumas das razões que sustentam nossa postura contra esse procedimento.
O que é a Vida?

Para Vieira, em “A Mente Humana” (1985), a manifestação da vida implica em PRINCÍPIO, PROGRAMA e PROJETO (finalidade) que, biologicamente é ESCATOLÓGICO, pois a ciência tem conhecimento das fases do desenvolvimento físico, do zigoto à morte. Mas, na visão filosófica, o PROCESSO do viver representa um PROJETO TELEONÔMICO, pois nem sequer sabemos “o que” é a vida, nem o “por que” ela acontece. Na consumação do PROJETO ESCATOLÓGICO (morte da matéria), restam indagações sobre o “destino” desse “alento” (vida, alma, espírito, mente…) que animou o corpo.

Assim, ao serem considerados esses três elementos – mente, vida e corpo, devemos refletir se a ocorrência de uma variação (anencefalia) na execução do PROGRAMA ESCATOLÓGICO de desenvolvimento do corpo físico de um ser humano que é único, no universo, constitui razão suficiente para que nos arvoremos em decidir pela interrupção de sua vida, desconsiderando, assim, todas as repercussões desse ato, em seu PROJETO TELEONÔMICO, cujo conteúdo desconhecemos, particularmente pelos canais da ciência acadêmica. É bem verdade que a Doutrina Espírita tem desvelado o profundo significado da realidade do espírito que, no suceder das reencarnações vem cursar a escola da vida na busca de sua contínua evolução.
O que é o anencéfalo?

Sendo o encéfalo constituído de tronco encefálico, cérebro e cerebelo, o termo anencéfalo deveria aplicar-se apenas ao indivíduo com total ausência de encéfalo.

Entretanto, os fetos chamados de anencéfalos mostram uma grande variedade de ocorrência de preservação de partes do encéfalo, de modo geral aquelas mais profundas, representadas pelo tronco encefálico, pelo diencéfalo (que Penfield, 1983, chama de tronco cerebral alto) e até mesmo por estruturas dos hemisférios cerebrais, por vezes do próprio córtex cerebral. Pode-se também observar ausência de formação da lâmina óssea da porção mais alta da cabeça.

Portanto, cada caso é um caso, mas certamente para todas as ocorrências, a designação de anencéfalo para um feto que se desenvolve, é totalmente inadequada. Se o feto evolui em seu processo gestacional, se tem controle automático de seus batimentos cardíacos e de outras funções viscerais, é porque tem estruturas neurais compatíveis, representadas no mínimo, pelo tronco encefálico. Alem do mais, a utilização corriqueira desse termo favorece, para os leigos, a construção da idéia equivocada e generalizada de que, “não tendo cérebro”, nada se pode fazer por esse feto, senão abortá-lo.

Mesmo no próprio meio espírita, muitos confrades, certamente apoiados no importante conceito emitido por André Luiz em “No Mundo Maior”, cap. 4, de que “o cérebro é o órgão de expressão da mente”, concluem erroneamente que esse feto “não tendo cérebro”, também não deve espírito, o que justificaria seu abortamento. Conforme elucida a Dra. Marlene Nobre (Folha Espírita no. 368), “Há inúmeros anencéfalos que persistem vivos por horas ou dias, após o nascimento, mesmo desconectados do cordão umbelical, justamente porque possuem o cérebro primitivo, responsável pelas funções básicas instintivas”.

Em O Livro dos Espíritos, 356-b, Kardec pergunta: “Toda criança que sobrevive tem, necessariamente, um Espírito encarnado?” A resposta não deixa dúvidas de que é afirmativa: “Que seria ela, sem o Espírito? Não seria um ser humano”. A Dra. Marlene Nobre, na mesma fonte indicada, complementa o esclarecimento: “…os corpos para os quais poderíamos afirmar que nenhum espírito estaria destinado seriam os dos fetos teratológicos, monstruosos, que não tem nenhuma aparência humana, nem órgãos em funcionamento”.
Havendo preservação de alguma parte do encéfalo, o que isso representa?

Paul Mac Lean, em “O Cérebro Trino em Evolução”, 1968 considera, no encéfalo humano, três formações que se dispõem concentricamente: a reptiliana (tronco encefálico), a paleomamífera (sistema límbico) e a neomamífera (neocortex). A primeira compreende o tronco encefálico e o complexo sensório – motor representado pelo tálamo e o corpo estriado. Sendo responsável pelo automatismo de funções viscerais básicas como respiração e controle cardiovascular, o autor considera que esse segmento “tem uma mente própria”.

Diferentemente da concepção monista materialista de muitos cientistas da atualidade, Wilder Penfield, eminente neurocientista, em “O Mistério da Mente”, 1983, cap. 05, afirma: “O indispensável substrato da consciência localiza-se fora do córtex cerebral, provavelmente no diencéfalo (o tronco cerebral alto), “porta de entrada e de saída da mente” (final do cap. 12), dimensão que, segundo considera, “tem uma energia diferente daquela dos potenciais neuronais que percorrem os caminhos axonais”. Penfield considera importantes as ligações desse segmento com áreas nobres dos hemisférios cerebrais (temporal e pré-frontal), do que resultaria a “exteriorização” dos fenômenos da consciência.

Como a glandula pineal localiza-se no diencéfalo, o enunciado cartesiano de que “a pineal é a sede da alma” encontra eco na concepção do Sistema Centroencefálico de Penfield.

Portanto, o feto chamado erroneamente de anencéfalo tem sempre preservada a porção mais profunda do encéfalo, responsável pelo controle automático de funções viscerais como batimentos cardíacos e capacidade de respirar por si próprio, ao nascer. Esse segmento tem ainda a possibilidade de representar substrato importante para a mente e a consciência (sistema centroencefálico de Penfield).

Como ainda são obscuros, para nós, os mistérios da relação cérebro-mente, não podemos permitir que nossa ignorância seja a condutora de decisões equivocadas como a do abortamento provocado desse feto.
O que a Ciência e a Ética têm a dizer?

Conforme refere a Dra. Marlene Nobre, em “O Clamor da Vida”, 2000, cap. 1, a ciência já se ocupa do significado do zigoto. Assim, dentre inúmeras citações, destaca-se a de Moore e Persaud (2002, p. 2), para quem “o desenvolvimento humano é um processo contínuo que começa quando o ovócito de uma mulher é fecundado por um espermatozóide de um homem… o zigoto e o embrião inicial são organismos humanos vivos, nos quais já estão fixadas todas as bases do indivíduo adulto”. Sendo assim, conclui a autora, não é possível interromper qualquer ponto do continuum – zigoto, embrião, feto, criança, adulto, velho – sem causar danos irreversíveis ao bem maior, que é a própria vida.

(*) Dr. Irvênia Prada é médica veterinária pela Universidade de São Paulo, professora titular em Neuroanatomia na Faculdade de Medicina Veterinária da USP.

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