Gilson Luís Roberto é presidente da Associação Médico-Espírita do Rio Grande do Sul (AME-RS)
Em 9 de novembro de 2006 o Conselho Federal de Medicina (CFM) instituiu resolução, publicada no Diário Oficial da União do dia 28 do mesmo mês, sobre a terminalidade da vida. Ela aponta que “na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. (Veja a resolução na íntegra no site do CFM – www.portalmedico.org.br)
No entanto, o Ministério Público Federal, através da Procuradoria da República no Distrito Federal, determinou ao Conselho Federal de Medicina a revogação da resolução, por entender que a medida é “uma afronta ao direito à vida” e constitui “incitação e apologia ao homicídio”, ameaçando entrar com uma ação civil pública na Justiça Federal caso o CFM não atenda à recomendação.
O Ministério Público Federal lembra que a ortotanásia, assim como a eutanásia, ainda é considerada homicídio pelo Código Penal Brasileiro e que o direito à vida está assegurado na Constituição Federal. “Considerando a indisponibilidade do direito à vida, sendo penalizado até o auxílio ao suicídio, inadmissível que se deixe ao alvedrio de médicos, parentes ou do próprio doente abreviar a vida (praticar homicídio), a pretexto de deixar o doente morrer no tempo adequado”, sustenta o procurador regional dos Direitos do Cidadão Wellington Marques de Oliveira.
Na verdade, o que se observa é que a Medicina e o meio jurídico têm compreensões e definições diferentes na utilização do termo ortotanásia. Enquanto na Medicina está relacionado à sua semântica, em que o prefixo grego orto significa “correto” e thanatos, “morte”, exprimindo morte no momento certo, sem abreviação da vida (eutanásia ativa e passiva) e nem prolongamentos desproporcionados do processo de morrer (distanásia), no meio jurídico ela é entendida como eutanásia passiva, ou seja, a suspensão dos recursos indispensáveis à manutenção da vida, sejam eles medicamentosos ou tecnológicos.
No meio dessa discussão estão os pacientes, que ficam perdidos com tantos conceitos confusos e interpretações particularizadas.
A situação se apresenta da seguinte forma: de um lado temos a eutanásia, que pode ser ativa (uso de algum método para abreviar a vida) ou passiva (deixar de utilizar ou suspender o suporte que mantém a vida), como sendo uma forma de provocar a morte e evitar o “sofrimento” do paciente, e no outro extremo temos o seu oposto, a distanásia, que seria o prolongamento da vida de forma desmedida com recursos que não conseguem evitar a morte, apenas provocam uma agonia prolongada, com sofrimentos físicos e/ou psicológicos ao paciente.
No primeiro caso, encontramos um desrespeito pela vida e uma insubmissão aos desígnios divinos através da fuga das experiências necessárias ao nosso ajustamento espiritual, acreditando que a morte significa o cessar da vida, sem considerar a dimensão espiritual e as consequências dolorosas geradas por essa atitude. Não entendendo o propósito profundo da existência, creem que a vida serve apenas para gozar, sendo a morte a solução final diante do desespero e do despreparo diante do sofrimento e do desencarne. No segundo caso, a morte é um mal que deve ser superado a qualquer preço. É o exagero no sentido oposto como consequência do medo aterrorizante perante a inevitabilidade da morte física, a única certeza absoluta da existência humana.
Ambas as atitudes representam o desconhecimento da vida espiritual com as suas leis e demonstram uma falta da sensibilidade que transforma o médico em apenas um técnico de saúde.
A morte é algo natural e não se justifica a sua recusa absoluta. Há um momento a partir do qual as tentativas de curar podem deixar de demonstrar compaixão ou de fazer sentido sob o ponto de vista médico. Isso não significa que o paciente ficará sem assistência médica, pelo contrário, o esforço deve ser posto em tornar o tempo de vida que reste ao doente o melhor possível, aliviando as dores e outros sintomas que o incomodam, além de oferecer todo o apoio humano, psicológico e espiritual, tanto por pessoal especializado como pelos familiares. Esses cuidados designam-se por cuidados paliativos e devem favorecer aos pacientes uma morte digna, amparados pela família e amigos. É muito triste ver os pacientes morrendo nas UTIs longe dos seus, sem o conforto das palavras amigas e dos recursos das preces e das leituras edificantes junto ao leito. Precisamos refletir muito sobre a necessidade da humanização da morte e do morrer.
‘Defendemos a morte no momento certo’
A Associação Médico-Espírita do Brasil, através da Carta de São Paulo – 2005, coloca-se totalmente contrária a qualquer tipo de eutanásia, seja ela ativa ou passiva, mas também não concorda com a obstinação terapêutica que nenhum benefício produz ao paciente e que geralmente inflige mais sofrimento provocando a distanásia. Somos favoráveis à morte no momento certo, que se anuncia iminente e inevitável, como processo natural da condição humana, renunciando ao chamado excesso terapêutico, que somente provocaria um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, deixar de oferecer aos pacientes a atenção médica e os cuidados paliativos. Somos contrários ao uso do termo ortotanásia, utilizado de forma distinta entre o Judiciário e a Medicina, dando margem à confusão com a eutanásia passiva.
Entendemos que, através da resolução sobre a terminalidade da vida, o Conselho Federal de Medicina está buscando a humanização da morte, evitando os prolongamentos abusivos com aplicações de meios desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionais aos pacientes. Mas, para que essa resolução alcance esse objetivo, algumas considerações precisam ser analisadas e respondidas.
Discussão
Primeiramente, tem faltado ao CFM uma discussão ampla com a própria classe médica e com os representantes da sociedade sobre os assuntos que são extremantes, complexos e delicados, com implicações éticas graves. Não é aceitável, numa sociedade democrática, que alguns poucos médicos definam o pensamento de uma classe, com repercussões técnicas e morais profundas, sem uma discussão mais ampla e rigorosa. Resoluções essas que muitas vezes ferem o próprio objetivo do Conselho Federal de Medicina que é a defesa da ética e da vida.
A resolução não define quais as situações e os critérios clínicos para o diagnóstico e a constatação da terminalidade da vida, dando margem para que cada médico defina esse conceito de conformidade com a sua experiência e conhecimento técnico, favorecendo dessa forma a prática da eutanásia passiva na falta de segurança desses critérios. Ela também não define quais os procedimentos técnicos e paliativos fundamentais que devem ser assegurados nos casos da terminalidade da vida e não assegura que esses procedimentos vão ser aplicados com o mesmo critério para os pacientes particulares, conveniados ou do SUS. E deixa ainda a desejar quanto à clareza de conceituação e da sua aplicabilidade, não existindo um sistema que evite a prática de abusos.
Portanto, ainda há muito para se discutir antes de se avançar nessa proposta. Precisamos promover discussões capazes de deixar muito bem definidas as situações clínicas, eticamente compatíveis com o abandono da terapêutica, o que não deve implicar no abandono dos cuidados médicos e humanos básicos para conforto e segurança do paciente.
Médicos despreparados
É necessário um maior preparo dos médicos para lidar com a morte, que, diante da inevitabilidade desta, geralmente não permanecem ao lado do paciente terminal, deixando-o aos cuidados da enfermagem nos derradeiros momentos de agonia. Daí a necessidade urgente das universidades favorecerem a criação de cadeiras de Medicina e Espiritualidade, resgatando a visão de totalidade do indivíduo e superando a ênfase atual no desenvolvimento da tecnologia em detrimento ao ser humano, dentro de um paradigma comercial empresarial da Medicina.
É fundamental expandirmos o conceito de cuidados paliativos dentro da área médica, onde o cuidar é mais importante que curar, buscando oferecer mais atenção ao doente do que à doença e medidas de conforto com alívio do sofrimento. Não está se falando aqui em omissão de recursos necessários, o que poderia deixar a impressão de uma eutanásia passiva. O foco está em não serem utilizadas medidas desnecessárias que visam apenas impedir a morte a todo custo e por todos os meios, sem outro objetivo além de, precisamente, prolongar a vida.
Lembro aqui da contribuição do dr. Carlos Roberto de Souza, da Associação Médico-Espírita de Campina Grande (PB), que apresentou um belo trabalho no Mednesp 2005, em São Paulo (SP), quanto ao morrer dignamente:
O que é morrer dignamente
1. Morrer sem dor (analgesia), sem sofrimento e na hora certa.
2. Morrer na presença de uma pessoa de estima (familiar ou amigo).
3. Morrer onde queira morrer (na sua família, por exemplo).
4. Apoio psicológico ou religioso.
5. Não ser abandonado.
6. Participar tanto quanto possível das decisões dos cuidados.
Em relação à eutanásia, distanásia e à morte natural
Manifestamo-nos:
1) Contrariamente a qualquer meio intencional que antecipe a morte natural do ser humano, seja pela eutanásia, ativa ou passiva, ou pelo suicídio assistido.
2) Contrariamente à distanásia, por entendermos tratar-se de um prolongamento inútil da vida, por uma obstinação terapêutica ou diagnóstica, através de meios artificiais que não trazem benefícios imediatos ao paciente, levando-o a uma morte agoniada, com muito sofrimento orgânico, psíquico e espiritual.
3) Favoravelmente à ocorrência da morte natural, a que se dá no tempo certo. Compete-nos respeitar a autonomia do paciente – suas crenças, medos, desejos e esperanças –, oferecendo-lhe apoio médico, psicológico, religioso e familiar, que lhe possibilite morrer sem dor e viver, com dignidade, seus últimos instantes de vida terrena. Compreendemos o processo do morrer como uma fase importante para o aperfeiçoamento do espírito, repleto de experiências enriquecedoras, tanto para o médico quanto para o paciente, sobretudo, quando ambos têm os olhos voltados para a realidade da vida imortal.
Carta de Princípios, estabelecida no V Congresso Médico-Espírita – Mednesp – 28/5/2005